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Gift giving and the goddess
A philosophy for social change


A dádiva de oferendas e a deusa

Uma filosofia para a mudança social

Por Genevieve Vaughan

A sociedade em que vivemos – chamemos-lhe “capitalismo patriarcal” à falta de melhor termo – cria uma perspectiva, um par de óculos graduados que nos é dado na infância, através dos quais nós aprendemos a olhar para o mundo e a interpretá-lo. Esses óculos criam uma visão selectiva, colocando em primeiro plano algumas coisas, remetendo outras para o fundo. Algumas coisas tornam-se mesmo totalmente invisíveis. Todos aqueles que acreditam em Deus(as), na magia e na imanência de um mundo melhor têm o privilégio e a responsabilidade de tirar esses óculos e tornar a focar. Existe um outro ponto de vista ao qual já aderimos mesmo sem o conhecer porque fomos formados para fazer pouco caso dele ou para interpretar as suas mensagens como outra coisa diferente. Trata-se do ponto de vista do paradigma da oferenda.

No início dos anos sessenta casei-me com um professor de filosofia italiano e mudámo-nos do Texas para a Itália. Por ter estudado filosofia da linguagem em Oxford, o meu marido foi convidado a colaborar com um grupo de professores italianos que iniciavam uma revista que se baseava na aplicação da análise marxista da mercadoria e do dinheiro à linguagem. Fui com ele aos encontros. Nessa altura estava nos meus vinte anos e ficava completamente confundida pelas ideias que o grupo discutia. Tive um desses momentos de iluminação nos quais parece que compreendemos tudo. E pensei: se isto significa tanto para mim, que sou uma rapariga normal do Texas, também as outras pessoas terão a mesma reacção. Bem, os anos passaram. A revista não chegou a ver a luz do dia, embora o meu marido tenha escrito livros sobre o assunto durante os vários anos em que estivemos casados. A sua perspectiva consistia em encarar a linguagem como uma troca. Por qualquer razão, tal perspectiva não me convencia inteiramente. Não estava de acordo com a minha visão original. Além disso, eu estava profundamente dedicada a ser mãe das nossas três filhas e achava que a troca era uma parte ínfima dessa experiência. De facto, troca é dar para receber. Enquanto que, no caso das crianças, temos que satisfazer as suas necessidades unilateralmente. Elas não podem realizar trocas connosco. Evidentemente que à medida que elas crescem podemos manipular nesse sentido, mas se seguirmos esse caminho acabamos normalmente por nos magoarmos a nós e às crianças. Eu sabia que a linguagem era mais antiga que a troca, e de certeza mais antiga do que a troca por meio do dinheiro. Além disso, as crianças aprendem a linguagem antes de aprenderem a trocar.

Tinha lido alguns antropólogos como Malinowsky e Mauss, que escreveram sobre a troca simbólica de oferendas e sobre o potlach competitivo. Comecei a desenvolver uma teoria sobre a linguagem, a troca e o dinheiro. Parecia-me que comunicação dizia respeito à satisfação das necessidades comunicativas, necessidades de nos relacionarmos como seres humanos, de relacionarmos a experiência que temos do mundo. Fiz uma análise do dinheiro como a “palavra incarnada” que satisfaz a necessidade comunicativa que cada um tem, no capitalismo, de se relacionar com o outro, preenchendo o vazio causado pela propriedade privada, que é mutuamente exclusiva. Aderi ao movimento feminista na Itália e, no grupo internacional de consciencialização de que fazia parte, que era formado sobretudo por mulheres ligadas à Organização das Nações Unidas para os Alimentos e Agricultura (que se localizava perto da minha casa), falávamos muito sobre o trabalho gratuito das mulheres em casa. Comecei a encarar o trabalho da mulher como trabalho oferendado e como base da co-muni-cação (“muni” significa “oferendas” em latim), como dádiva de oferendas gratuitas que no conjunto formam a co-muni-dade. Na realidade, ao criarmos as nossas crianças nós formamos os corpos e as mentes das pessoas que constituem a comunidade. Esta comunicação material sem signos, que envolve dar e receber sem compensações, é que faz de nós uma geração após a outra.

Dar tem uma lógica transitiva intrínseca. Se A dá a B e B dá a C, então A dá a C. Além disso, quando satisfazemos a necessidade de alguém, valorizamos esse alguém, uma vez que a implicação é que se esse alguém não fosse importante para nós, não procuraríamos satisfazer a sua necessidade. O dador tem que concentrar-se na necessidade do outro para que a transacção seja centrada no outro. A sua satisfação reside na satisfação e bem-estar da outra pessoa. O receptor deve utilizar activamente o que lhe é dado para que a oferenda não se perca. Contrariamente ao que algumas vezes se pensa, a posição do receptor é criativa, não é passiva. Mais tarde ele pode mudar de posição, pode tornar-se também um dador, dando alguma coisa a alguém mais, sem ter necessariamente que dar de volta ao dador um equivalente daquilo que recebeu. A motivação da oferta é a satisfação da necessidade, não a retribuição. As necessidades evoluem e mudam. Após a satisfação das necessidades básicas desenvolvem-se novas e mais complexas necessidades. As crianças começam por viver de leite mas depois precisam de outro tipo de alimentos; aprendem a andar e precisam que as mães as deixem ser independentes, e as mães também satisfazem essa necessidade. Dar e receber oferendas cria laços entre o dador e o receptor. O receptor sabe que está alguém “lá fora” porque alguém lhe satisfez uma necessidade. O dador sabe que o receptor está “lá fora” porque constatou a necessidade e encontrou ou procurou um meio de a satisfazer, e sabe que influenciou o bem-estar de outra pessoa. Os laços formam-se sem a expectativa da reciprocidade. Não é o surgimento de uma dívida que forma o laço, mas antes a satisfação directa da necessidade do outro. Esta capacidade de estabelecimento de laços que está na base da co-muni-dade é muitas vezes considerada instintiva. Todavia, como recentemente as mulheres tem procurado afirmar, criar requer uma grande dose de esforço consciente por parte de quem cria.

Oposto à dádiva de oferendas está a via da troca, segundo a qual as necessidades do outro são satisfeitas apenas para procurarmos a satisfação das nossas necessidades. A troca envolve uma lógica orientada para o ego e requer o cálculo, a quantificação e a medida para determinar que aquilo que é recebido seja igual ao que é dado. A troca tem uma lógica de adversários e competição porque nela cada pessoa tenta receber o mais possível da transacção. A nossa economia capitalista baseia-se na troca. A lógica da troca influencia intimamente todas as nossas relações, onde antes existia a dádiva de oferendas. O dinheiro é usado para definir o valor das pessoas, os economistas falam de um “mercado de casamentos”, de um “mercado livre de ideias”, de “capital humano”. Os restaurantes de “fast food” triunfam sobre a alimentação, e a publicidade “educa” as nossas necessidades – ao mesmo tempo que nós pagamos por essa educação como parte do preço do produto. Para o mercado, as necessidades existem apenas na medida em que são colocadas por uma “demanda efectiva”, a demanda daquelas pessoas que têm dinheiro para pagar os produtos. As outras necessidades simplesmente não “existem”.

A economia de troca requer escassez para poder funcionar apropriadamente. Se a dádiva de oferendas fosse o modo de distribuição a troca tornar-se-ia desnecessária. As pessoas não trocariam se as suas necessidades já tivessem sido satisfeitas pela dádiva de oferendas. Podemos verificar a criação da escassez por exemplo quando produtos claramente abundantes, digamos pêssegos, são enterrados para se poder manter elevado o preço dos restantes pêssegos. A abundância também afecta o sentido da hierarquia. Ninguém se sentiria obrigado a obedecer, a manter e a premiar “quem está em cima”, se pudesse satisfazer as necessidades noutro lugar. A escassez é criada artificialmente através das despesas em armamento (gastam-se 18 biliões de dólares por semana em armamento em todo o mundo, quantia que seria suficiente para alimentar todos os esfomeados da terra durante um ano) e outros gastos desnecessários e não criativos, de forma a criar-se e manter-se um contexto no qual a troca e a hierarquia parecem ser necessárias para a sobrevivência. Existe também uma espécie de “escassez do sentido”:  chegar ao topo aparece como a forma de darmos sentido às nossas vidas. Se não conseguirmos este objectivo de nos tornarmos dominantes as nossas vidas perdem o sentido.

Penso que para percebermos o que se passa temos que distinguir entre dar oferendas, por um lado, e trocar por outro. A perspectiva da troca é tão poderosa e penetrante que obscurece e esconde a da dádiva de oferendas. Por exemplo, os arqueólogos consideram as práticas de “partilha de alimentos” como importantes no início da pré-história, e um livro recente1 menciona  a “educação”2 (no sentido de criação) como uma possível base para o desenvolvimento da linguagem. A partilha de alimentos pode ser considerada como uma dádiva de oferendas e a criação é uma actividade que todas as mães levam a cabo. Quando não se reconhece a dádiva de oferendas como uma forma de comportamento humano importante e independente, com a sua lógica, perde-se a continuidade entre a actividade maternal e os outros tipos de actividade. Os antropólogos que estudam a dádiva de oferendas nas chamadas culturas “primitivas” referem-se a “troca de oferendas”. A sua concentração na dívida e na reciprocidade forçada como base dos laços humanos nega a capacidade que as formas directas de dar e receber têm para estabelecer laços.

Ao longo dos anos desenvolvi uma teoria da linguagem como dádiva de oferendas, por oposição à teoria do meu ex-marido, da linguagem como troca. Apesar de darmos uns aos outros, criando a comunidade, há muitas coisas materiais que não podemos dar, como as montanhas ou o sol, e muitas coisas imateriais, como a justiça ou o companheirismo, que não podem ser transferidas ou passadas simplesmente de uns para os outros. As palavras são oferendas sonoras socialmente inventadas que podemos dar uns aos outros em lugar de outras oferendas materiais ou imateriais, criando os nossos laços enquanto parte do grupo, verbalmente quando tal não pode ser feito materialmente. Satisfazemos as necessidades comunicativas que cada um tem de estar em relação com o mundo. A especificação desta relação num dado momento constitui a transmissão (dar e receber) de informação. Na comunidade, relacionamo-nos uns com os outros enquanto dadores e receptores verbais relativamente a partes e aspectos específicos do mundo. Mesmo a sintaxe pode ser vista como a transposição da dádiva para a relação entre as palavras. O sujeito, o predicado e o complemento podem ser vistos como o dador, a dádiva ou serviço, e o receptor. Uma teoria da linguagem nesta base recoloca a actividade maternal no seu lugar de principal factor para que nos tornemos humanos, não apenas enquanto espécie mas individualmente, um a um.

O raciocínio abstracto tem sido influenciado pela troca. Ele não se trata de uma actividade sui generis mas apenas da complicação entre a dádiva de oferendas e da linguagem, que deixou de lado ou escondeu o outro conteúdo orientado para poder lutar contra a causa e o efeito, a quantificação, a consciência de si e, supostamente, a “actividade” não valorizada (não a actividade de dádiva de valores). Ao abstrairmo-nos da dádiva de oferendas preparamo-nos para a troca. Eliminamos o sentido das relações humanas e dos laços com base na dádiva, e separamos a razão das emoções que respondem a necessidades. Então, perguntamo-nos porque é que as nossas vidas não têm “sentido”. Esquecemo-nos que a verdade é orientada para o outro, que satisfaz a necessidade de conhecimento do outro, enquanto que a mentira é construída de acordo com o modelo da troca, satisfazendo apenas a necessidade do próprio sujeito.

Muitos aspectos da nossa vida são influenciados pelo paradigma da troca sem que tenhamos consciência disso. Por exemplo, a justiça é construída segundo o modelo da troca. Quantificamos o mal e impomos uma compensação. O sentimento de culpa é uma espécie de prontidão pessoal para pagarmos. Em lugar disto precisamos de gentileza, perdão e concentração nas necessidades de todas as partes envolvidas. O lucro, no sentido que Marx lhe dá de mais-valia, é uma parte não paga do trabalho do operário que pode ser considerada como dádiva acrescida. O sistema de troca depende desta dádiva para a sua motivação, tal como depende de muitas oferendas gratuitas que lhe são dadas pelo trabalho de criação das mulheres (e alguns homens), da actividade por vezes complexa de ir às compras, do cuidar das crianças ou dos velhos, da “reprodução” da força de trabalho. Ao longo da história, os diferentes tipos de escravatura providenciaram o trabalho “extra”, forçado e não pago, que se mostrou necessário para o crescimento da troca “justa” e equitativa.

Se tirarmos os óculos da troca podemos ver a Mãe Terra não mais como o adversário ou a matéria-prima para as nossas actividades geradoras de lucro, mas como o grande dador de oferendas. Cada um dos quatro elementos tem uma qualidade dadora diferente. O fogo pode ser dado o outros sem se perder um bocado; a água suporta a vida gratuitamente, constituindo a maior parte da massa do nosso corpo; a terra dá-nos o chão, o espaço, e numerosas dádivas de plantas e animais; e o ar circula das zonas de altas pressões para as zonas de baixas pressões, de onde existe em abundância para onde existe menos. (É esta a resposta que sopra no vento). O nosso coração bomba sangue para satisfazer as necessidades das nossas células e a seguir o sangue regressa para ser re-oxigenado. Cada nicho ecológico satisfaz as necessidades dos animais e plantas que a ele se adaptaram. A luz das estrelas atravessa o espaço interminável para se tornar uma oferenda sempre que os nossos olhos se dispõem a recebê-la. A própria Mãe Terra se apropriou da luz do sol, utilizando-a para criar vida segundo inumeráveis configurações interactivas (inter-dádivas). De facto, o seu processo de funcionamento baseia-se na dádiva de oferendas, não na troca. Assim, como aconteceu a troca? Como nos afastámos tanto do processo da Mãe?

Creio que a resposta anda à volta do que se segue. Ao nomearmos os rapazes e as raparigas com nomes diferenciados em termos de género nós alienámos as crianças masculinas. Ensinámos-lhes que têm que ser diferentes das respectivas mães dadoras de oferendas, mesmo que seja difícil construir uma identidade separada do processo de doação de oferendas através do qual os nossos corpos e mentes são formados. Os psicólogos cognitivos descobriram recentemente que nós construímos as nossas categorias com recurso a arquétipos.3 Quando um rapaz descobre que não é parte da categoria da sua mãe doadora de oferendas ele elege o pai como arquétipo da categoria “humana” e utiliza esse arquétipo para o  desenvolvimento próprio de uma identidade não-criadora, não-feminina, que lhe parece ser a identidade humana. Existe uma relação de um-para-muitos entre o arquétipo e as coisas com ele relacionadas, e assim, logicamente, só há um arquétipo por categoria. Os rapazes estão numa situação de ter que competir com o pai e com outros homens para se tornarem no único arquétipo do “humano” – uma tarefa contraditória e quase impossível. A competição para chegar ao topo e lá permanecer torna-se dominante e avassaladora. As hierarquias são construídas para fornecer muitos níveis de categorias para que pelo menos algumas pessoas diferentes possam ter a posição de arquétipos. Em resposta a esta agenda artificial e mal concebida, as mulheres são vistas como aquelas que não podem ser arquétipos do conceito de humano, e que não competem pela dominância. De facto, elas continuam a ser socializadas para ser mães e para prosseguir uma agenda diferente e mais humana enquanto dadoras de oferendas. O facto de tanto homens como mulheres poderem participar na força de trabalho e tomar conta das crianças mostra que aqueles que descrevemos são papéis e sistemas de valores impostos. Não são biologicamente predeterminados. De facto, muitas pessoas possuem os dois sistemas de valores operando internamente, com toda a conflitualidade e confusão que isso “engendra”.

Os antropólogos falam sobre um “registo da masculinidade” que atravessa culturas diferentes e descrevem muitos ritos de puberdade mais ou menos atrozes que asseguram o distanciamento do rapaz em relação à mãe e ao processo de criação. O estoicismo e autonomia a que os homens são supostos aderir encorajam-nos a permanecerem distantes face às suas necessidades e às necessidades dos outros. Evidentemente que a atenção às necessidades é necessária para que o processo de dádiva de oferendas funcione. A competição e a dominação fazem parte do texto e ocorrem por oposição à dádiva de oferendas, à cooperação, à inclusão e à celebração das diferenças. Um local que não tem este “registomasculino” é a ilha de Tahiti. A língua do Tahiti não possui termos que distingam os géneros.4 Para mim, isto parece provar a minha ideia segundo a qual o registo é basicamente escrito pela própria linguagem, causando um problema de descategorização. Algumas outras sociedades caçadoras-recolectoras, como os Kung africanos, vivem em harmonia com a natureza. Reconhecem que a natureza toma conta deles, dando-lhes oferendas numa “economia cósmica de partilha”.5 Aí, o arquétipo maternal é reconhecido ou projectado na natureza, mesmo se a linguagem contém distinções de género e misoginia.

Se a linguagem se baseia na dádiva de oferendas, e se foi a linguagem que fez com que a humanidade evoluísse, podemos então dizer, pelo menos em parte, que foi a dádiva de oferendas que fez evoluir a humanidade. Nós somos, de facto, dadores e receptores de oferendas, tal como a natureza, mas interpretámos mal a oferenda das nossas diferenças biológicas e as correspondentes oferendas dos nossos termos de género, significando que temos diferentes registos básicos de vida. Esses registos alienam os membros de metade da humanidade da norma da dádiva de oferendas, e colocam a outra metade numa posição de subserviência. Uma solução pacífica de longo prazo para o problema seria eliminar os termos de género, como acontece no Tahiti. A outra consiste na restauração do arquétipo maternal.

Uma vez que todos nós fomos crianças que tiveram mães ou alguém que tratou de nós e nos criou, podemos entender a natureza como garantindo a nossa vida, dando-nos oferendas. Podemos desenvolver uma epistemologia na qual a nossa resposta à nossa experiência, o conhecimento, pode ser encarada como uma espécie de gratidão. Temos permanecido cegos a este aspecto da natureza humana, dando as nossas oferendas ao mercado, ao paradigma da troca e a valores do “registo masculino”. O paradigma da troca compete sem tréguas com o paradigma da oferenda. Muitas das grandes atrocidades da história, do massacre das feiticeiras ao genocídio dos povos indígenas, foram motivadas pela necessidade do paradigma da troca de eliminar o modelo maternal da dádiva de oferendas enquanto arquétipo da vida humana na terra. Todavia, actualmente a economia de troca está a destruir o planeta e a penalizar um imenso número de humanos através da pobreza, da doença, da violência e da guerra. Temos que ser suficientemente sábios para mudar de paradigma, em direcção à via maternal.

Encontramo-nos num momento crítico. Tal como um psicótico, a sociedade “refugia-se”, representando externamente a sua psicose a outro nível, nas suas instituições, nas suas hierarquias e nas suas guerras, nos actos individuais ou colectivos de violência competitiva para conquistar uma posição dominante. Na altura em que escrevo estas palavras, o meu país e os vossos exteriorizam o seu registo masculino para destruir o arquétipo masculino de outra sociedade despejando milhões de toneladas de bombas e mísseis fálicos sobre o seu território e o seu povo, para se verem livres deles. A longo prazo, as empresas do primeiro mundo pilham os países do terceiro mundo em nome do “comércio livre”. Cria-se escassez onde devia existir abundância, causando a morte e a doença de muitos, enquanto uns poucos, lá no topo, acumulam o capital que permite reforçar o seu poder sobre a maioria. Neste cenário, a dádiva de oferendas parece irrealista, parece um sonho impossível. Todavia, as psicoses podem ser tratadas. A metade da humanidade que não recebeu o registo masculino pode começar a activar os valores da dádiva de oferendas que já tem, e a promovê-los pessoalmente e politicamente. A outra metade da humanidade que já tem esse registo pode começar a questioná-lo em vez de aderir a ele ou de o exteriorizar.

Podemos todos começar a encarar os problemas da sociedade como necessidades que estão à espera de ser satisfeitas. As soluções para os problemas da nossa sociedade, para os seus comportamentos psicóticos, para os seus padrões de comportamento cruéis e assassinos, são as maiores oferendas que alguém pode dar. São oferendas para as crianças do futuro, e para a própria Mãe Terra, que não quer ver destruídas as suas preciosas criações. Essas oferendas também nos trazem a dádiva curativa do auto-respeito, dado que estaremos a agir como elementos de uma raça humana que está em harmonia com o universo dador de oferendas. Acredito que um activismo social e político consciente constitui uma forma de começarmos a dar essas oferendas. Outra é a criação de modelos alternativos. Outra ainda é a comunicação a um “meta”-nível sobre a sociedade doente e sobre a economia de oferendas. Ao mesmo tempo, temos que evitar os obstáculos que têm impedido até agora a mudança de paradigma. Por exemplo, a caridade, apesar de envolver a dádiva de oferendas, só é funcional a um nível individual e não questiona o sistema instalado. Temos que concentrar a nossa atenção na mudança das instituições psicóticas, não no salvamento de vítimas individuais. Ao mudarmos as instituições e o paradigma podemos poupar toda a gente. Creio que a popularidade da Princesa Diana e da Madre Teresa se deve à nossa vontade de achar um arquétipo feminino de dador de oferendas. Contudo, essas duas mulheres estavam enredadas em instituições patriarcais, e não se concentravam na mudança do sistema em si, estando antes envolvidas na prática da caridade individual. Creio que a mudança do sistema constitui a chave, porque é o sistema que causa os problemas. A concentração na caridade individual leva-nos normalmente a esquecer a necessidade de uma mudança sistémica e não põe em causa o status quo.

Um outro paradoxo diz respeito à própria posição do arquétipo. Se o arquétipo pessoal é, como eu acredito, a projecção de um instrumento do nosso processo de formação conceptual, a concentração na sua dominância e singularidade cria uma mentalidade “exclusionária”, tal como acontece com o monoteísmo. O arquétipo do dador de oferendas como singular e dominante é uma contradição na definição. O dador de oferendas inclui sempre o outro. Além disso, tal como diz Patricia Mognahan, a espiritualidade da deusa nunca é monoteísta. Por outro lado, o Cristianismo pode ser visto como a proposta de um arquétipo de dador de oferendas masculino (talvez a ideia da Trindade seja uma tentativa de ultrapassar o paradoxo por meio da reintrodução da pluralidade no arquétipo, unificando os muitos no Um). O monoteísmo e as hierarquias patriarcais escondem a dádiva de oferendas que as mulheres têm praticado quotidianamente ao longo da história. A validação do sacrifício impede-nos de ver que o contexto de escassez no qual o sacrifício se torna necessário é criado pelo sistema de troca.

Aqueles de nós que honram os caminhos antigos e amam a Mãe Terra, identificando-a com o maravilhoso, podem participar na diversidade da vida para além do monoteísmo, amando o todo nas suas partes. Quando criarmos uma sociedade na qual a dádiva de oferendas se torna a norma humana, a nossa espiritualidade libertar-se-á e nós reconheceremos o divino em cada um e na terra. Embora alguns de nós possam pensar que já estamos a experimentar este fenómeno, temos que nos lembrar da terrível situação em que se encontra a sociedade e virar a nossa capacidade de dar oferendas para as grandes causas. Protestar contra o patriarcado é uma necessidade espiritual. Como mães, temos que tomar conta da sociedade, do futuro, da nossa Mãe Terra e das mães humanas, assim como das nossas crianças. Quando apelamos às deusas antigas da nossa e de outras culturas, reforçamo-nos com as suas oferendas e respeitamos a necessidade do povo do passado de não ter vivido em vão, de ter uma descendência que sobreviva neste planeta mágico, que não deve ser destruído. Quando olhamos para o nosso planeta a partir do espaço verificamos que vivemos aqui num éden comparativo. O sol brilha nos outros planetas e na lua mas nem por isso eles deixam de ser desolados. A terra criou toda esta abundância de vida utilizando a energia do sol. Ela é o receptor-e-dador criativo. Devemos honrar os seus processos. Quando tivermos restaurado o caminho da dádiva de oferendas seremos capazes de co-muni-car com os espíritos da natureza que não têm um registo diferenciado pelo género. Actualmente, o nosso sistema de troca deve ser tóxico para eles e por isso eles mantêm-se afastados de nós. As nossas capacidades psíquicas não se podem desenvolver porque o conteúdo das nossas mentes foi tornado manipulável pela nossa economia. Talvez se criarmos uma sociedade baseada nas oferendas sejamos capazes de formar uma comunidade igualmente com o espírito dos mortos, na prática um paraíso na terra.

Referências

1. George Lakoff, 1987: Women, Fire and Dangerous Things. Chicago, University of Chicago Press.

2. David G. Gilmore, 1990: Manhood in the Making. New Heaven & Londres, Yale University Press.

3. Nurit Bird-David, 1992: Beyond the Original Affluent Society in Limited Wants, Unlimited Means, ed. John Gowdy, Island Press, Washington D.C. 1998.

 


 

DE ONDE VÊM AS FEMINISTAS

Por Nan Peacocke

Imaginem um mundo com dois sexos, um chamado os Viajantes e o outro as Jardineiras. Em conjunto, eles edificam a humanidade.

Os Viajantes são um sexo magnífico. Eles viajam por toda a terra, fundando aldeias e cidades, fazendo coisas importantes. Nos belos barcos que constroem podem ir a toda a parte, ensinando e aprendendo os muitos caminhos do mundo, as canções da experiência.

As Jardineiras têm a sua própria cultura. Estudam as plantas e como crescem as coisas, pintam retratos com  pinceladas brilhantes de cor que vêem nas pedras. Nomeiam as coisas e transformam as palavras em histórias. Inclinam-se para as coisas vivas da terra, incluindo os Viajantes. De facto, elas dão vida aos Viajantes e a si próprias, através de um processo chamado “nascimento”. As Jardineiras usam o seu poder para transformar a terra em vida.

“Poder” é uma boa palavra. Significa “força para agir”. A humanidade usa o poder para criar a partir do que existe em volta, um lugar onde se goza a vida. Mas a humanidade também abusa do poder, apropriando-se dele ou concedendo-o de uma maneira que magoa.

Assim os Viajantes passaram a usar o poder da sua cultura activa para dominar a cultura das Jardineiras, que concede a vida. Eles usam as Jardineiras como quem usa um recurso, como usam as árvores, os rios ou o vento. Em vez de conviver com elas como espíritos amigos, eles dizem “Estas Jardineiras são maravilhosas, serão nossa propriedade; e os jardins pertencem-nos”.

E como as Jardineiras deixaram que os Viajantes as dirigissem, estes tornaram-se muito agressivos e egoístas, e o amor entre eles passou a ser violento e infeliz. Eles passaram a suspeitar e a temer o poder uns dos outros. Isto piora as coisas porque o grande medo tolhe a alma a menos que com ele conviva uma grande esperança para o redimir.

À medida que o tempo passa certos membros do sexo dos Viajantes chamados os Maiorais, tornaram-se muito fortes. Constroem sistemas de trabalho, de governo e de guerra que aumentam o seu poder sobre a própria terra, e controlam o futuro até às estrelas.

As Jardineiras e os Viajantes que amam a liberdade e a justiça tentam resistir aos Maiorais, e por vezes levam a melhor. Todavia, os sistemas dos Maiorais resistem ao passar do tempo. Eles permanecem seguros e poderosos, viajando para cima e para baixo, tiranizando a humanidade.

Isso porque enterrado no fundo do coração do Viajante existe o pecado da sua própria injustiça em relação à Jardineira. E fundo no coração da Jardineira existe a vergonha de permitir que tal aconteça.

É assim que surgem as feministas. Evidentemente, se temos alguma coisa sem esforço é difícil abdicarmos dela. Ao mesmo tempo, se queremos alguma coisa que é nossa e o outro não nos quer dar, temos que lutar por ela.

Por esta razão as feministas são no presente, e sê-lo-ão por muito tempo, sobretudo Jardineiras. Mas cada vez mais Viajantes entregarão o seu coração a uma causa que é a esperança da vida inteira.

As feministas sabem que para haver justiça os pobres e os oprimidos terão que se manifestar. Sabemos que existe uma vida melhor entre homens, crianças e mulheres; que deve haver justiça nas pequenas coisas para que a justiça exista nas grandes coisas; que o poder tem muitas faces; ele pode ser brutal ou maravilhoso, escondido ou explosivo. Temos que conhecer todas as faces do poder se quisermos mudar as coisas e mudarmo-nos a nós próprios.

Barbados

Junho de 1985

/ In: AVALON Magazine Spring 1999:4-8.

/ Traduzido por João Paulo Borges Coelho, Faculdade de Letras, Departamento de História e Investigador Associado do Centro de Estudos Africanos, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique.



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